Autor: A. Marinho e Pinto, no JN, vide link.]
Sempre que defendo a incompatibilidade entre a função (soberana) de deputado e a actividade (privada) de advogado, logo surgem a atacar-me advogados que não querem alterar a situação existente, nem sequer que se fale nisso publicamente. José Miguel Júdice, Manuel Magalhães Silva e, mais recentemente, Paulo Rangel, são alguns dos que mais se destacaram nesses ataques. Todos têm em comum o facto de repetirem, quais discos riscados, os mesmos epítetos (simplista, "populista" e "demagógico"), mas também a circunstância de serem sócios de grandes escritórios de Lisboa que, obviamente, têm muito interesse em terem advogados deputados na Assembleia da República (AR).
É inadmissível que numa República democrática haja titulares de um órgão de soberania, como é o Parlamento, que ao mesmo tempo representem profissionalmente entidades privadas interessadas no conteúdo das leis elaboradas nesse órgão. É de meridiana evidência que quem participa na elaboração de leis na AR não deve participar na sua aplicação nos tribunais, patrocinando partes interessadas nessas leis. Não se pode confiar nas leis de um Parlamento cujos deputados têm clientes privados interessados nessas leis. Essa mistura degrada os princípios republicanos.
O sentido normativo de muitos diplomas legais é, muitas vezes, determinado mais pelo concreto interesse privado que se defende (às ocultas) do que pelo interesse público próprio de uma lei geral e abstracta. Há leis que são feitas à medida de certos interesses privados que ninguém identifica durante o processo legislativo, excepto, naturalmente, o deputado que patrocina, como advogado, esses interesses. Algumas leis vestem, como um fato à medida, em certos clientes de certos deputados.
O que se passou com as leis de amnistia chegou, em alguns casos, a constituir uma verdadeira ignomínia sobre o Parlamento, dada a forma como alguns deputados beneficiaram os seus clientes. Houve reduções de penas a crimes de pedofilia, em detrimento de outros bem menos graves e chegou-se mesmo ao ponto de a versão de uma dessas leis publicada no "Diário da República" ser diferente da versão publicada no "Diário da AR" por ter sido alterada à socapa já depois de aprovada em plenário.
Outro dos escândalos tem a ver com as prescrições, havendo centenas ou milhares de processos que prescreveram nas últimas décadas, devido, sobretudo, a alterações legislativas que favoreceram os clientes de vários deputados/advogados, mas que lançaram o caos nos tribunais.
Mas, o que se passa com as leis fiscais é o exemplo mais elucidativo dessa promiscuidade de haver pessoas a defender simultaneamente interesses públicos e privados incompatíveis entre si. Há milhares de milhões de euros em processos fiscais acumulados nos tribunais porque as leis fiscais tornaram-se num denso e confuso emaranhado normativo, cheio de alçapões só identificados por quem os concebeu. O resultado está à vista: o Estado não consegue cobrar impostos a quem os impugna judicialmente, pelo que o seu pagamento vai passar a ser negociado através de arbitragens em que o devedor pode nomear um dos juízes (árbitros). É a legalização da fuga (parcial) aos impostos para os grandes contribuintes, mas é também um convite ao alargamento da corrupção. Todos vão sair a ganhar, excepto, obviamente, o Estado que sairá sempre a perder.
A acumulação de funções públicas com actividades privadas gera um mundo à parte que propicia e dissimula os negócios em torno do Estado, dos seus órgãos centrais, regionais e locais, dos seus institutos e empresas, etc.. Muitas dezenas de políticos acumula(ra)m funções públicas (nomeadamente deputados) com actividades privadas (principalmente de advocacia). Entre eles, destacam-se António Almeida Santos (uma espécie de patriarca do mundo dos negócios público-privados), Manuel Dias Loureiro, Domingos Duarte Lima, Ricardo Rodrigues, Guilherme Silva, Vera Jardim e Paulo Rangel, entre muitos outros. Este último, que tanto tem berrado publicamente contra o PS, nunca teve divergências políticas com o dirigente socialista António Vitorino na grande sociedade de advogados de Lisboa de que ambos são sócios. Aí nunca sentiu qualquer claustrofobia democrática. Pelo contrário, parece que ambos se sentem lá muito bem oxigenados.