domingo, 6 de maio de 2012

Seres Decentes-Crónica de Fernando Dacosta


O texto impedia que o vencimento do Chefe do Estado fosse «acumulado

com quaisquer pensões de reforma ou de sobrevivência» públicas que

viesse a receber.

Sem hesitar, o visado promulgou-o, impedindo-se de auferir a aposentação de militar para a

qual descontara durante toda a carreira. O desconforto de tamanha injustiça levou-o,

mais tarde, a entregar o caso aos tribunais que, há pouco, se pronunciaram a seu favor.

Como consequência, foram-lhe disponibilizadas as importâncias não pagas durante catorze

anos, com retroactivos, num total de um milhão e trezentos mil euros.

Sem de novo hesitar, o beneficiado decidiu, porém, prescindir do benefício, que o não era

pois tratava-se do cumprimento de direitos escamoteados - e não aceitou o dinheiro.

Num país dobrado à pedincha, ao suborno, à corrupção, ao embuste, à traficância, à ganância,

Ramalho Eanes ergueu-se e, altivo, desferiu uma esplendorosa bofetada de luva branca no videirismo, no arranjismo que o imergem, nos imergem por todos os lados.

As pessoas de bem logo o olharam empolgadas: o seu gesto era-lhes uma luz de conforto, de

ânimo em altura de extrema pungência cívica, de dolorosíssimo abandono social.

Antes dele só Natália Correia havia tido comportamento afim, quando se negou a subscrever

um pedido de pensão por mérito intelectual que a secretaria da Cultura (sob a responsabilidade de

Pedro Santana Lopes) acordara, ante a difícil situação económica da escritora, atribuir-lhe. «Não,

não peço. Se o Estado português entender que a mereço», justificar-se-ia, «agradeço-a e aceito-a.

Mas pedi-la, não. Nunca!»

O silêncio caído sobre o gesto de Eanes (deveria,pelo seu simbolismo, ter aberto telejornais e

primeiras páginas de periódicos) explica-se pela nossa recalcada má consciência que não suporta,

de tão hipócrita, o espelho de semelhantes comportamentos. “A política tem de ser feita respeitando uma moral, a moral da responsabilidade e, se possível, a moral da convicção”, dirá. Torna-se indispensável “preservar alguns dos valores de outrora, das utopias de outrora”.

Quem o conhece não se surpreende com a sua decisão, pois as questões da honra, da integridade,

foram-lhe sempre inamovíveis. Por elas, solitário e inteiro, se empenha, se joga, se acrescenta

- acrescentando os outros. “Senti a marginalização e tentei viver”, confidenciará,

“fora dela. Reagi como tímido, liderando”. O acto do antigo Presidente («cujo carácter e

probidade sobrelevam a calamidade moral que por aí se tornou comum», como escreveu numa

das suas notáveis crónicas Baptista-Bastos) ganha repercussões salvíficas da nossa corrompida,

pervertida ética. Com a sua atitude, Eanes (que recusara já o bastão de Marechal) preservou um nível de dignidade decisivo para continuarmos a respeitar- -nos, a acreditar-nos - condição imprescindível

ao futuro dos que persistem em ser decentes. 

Fernando Dacosta

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