quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Um país insuportável

POR: A. MARINHO E PINTO


A falta de bom-senso e humildade constitui uma das principais causas da
degenerescência da justiça portuguesa. Tudo seria simples se houvesse uma
coisa que falta cada vez mais aos nossos magistrados: bom senso.
Uma mulher com 88 anos de idade morreu no seu apartamento em Rio de Mouro,
Sintra, mas o corpo só foi encontrado mais de oito anos depois, juntamente
com os restos mortais de alguns animais de companhia (um cão e dois
pássaros).
Este caso, cujos pormenores têm sido abundantemente relatados na comunicação
social, interpela-nos a todos não só pela sua desumanidade mas também pela
chocante contradição entre os discursos públicos dominantes e a dura
realidade da nossa vida social. Contradição entre promessas e garantias de
bem-estar, de solidariedade e de confiança nas instituições públicas e uma
realidade feita de solidão, de abandono e de impessoalidade nas relações das
instituições com os cidadãos.
Apenas duas ou três pessoas se interessaram pelo desaparecimento daquela
mulher, fazendo, aliás, o que lhes competia. Com efeito, uma vizinha e um
familiar comunicaram o desaparecimento às autoridades policiais e judiciais
mas ninguém na PSP, na GNR, na Polícia Judiciária e no tribunal de Sintra se
incomodou o suficiente para ordenar as providências adequadas. Em face da
participação do desaparecimento de uma idosa a diligência mais elementar que
se impunha era ir à sua residência habitual recolher todos os indícios sobre
o seu desaparecimento. É isto que num sistema judicial de um país
minimamente civilizado se espera das autoridades policiais e judiciais, até
porque o caso era susceptível de constituir um crime. O assalto e até
assassínio de idosos nas suas residências não são, infelizmente, casos assim
tão raros em Portugal. Mas, sintomaticamente, as autoridades judiciais não
só não se deram ao trabalho de se deslocar à residência como,
inclusivamente, recusaram-se a autorizar os familiares a procederem ao
arrombamento da porta de entrada.
E tudo seria tão simples se houvesse uma coisa que falta cada vez mais aos
nossos magistrados: bom senso. Mas não. Dava muito trabalho ir à uma
residência procurar pistas sobre o desaparecimento de uma pessoa. Dava muito
trabalho oficiar outras instituições para prestar informações sobre esse
desaparecimento. Sublinhe-se que um primo da idosa se deslocou treze vezes
ao tribunal de Sintra para que este autorizasse o arrombamento da porta da
sua residência. Mas, em vez disso, o tribunal, lá do alto da sua soberba,
decretou que a desaparecida não estava morta em casa, pois, se estivesse,
teria provocado mau cheiro no prédio. É esta falta de bom-senso e humildade
perante a realidade que constitui uma das principais causas da
degenerescência da justiça portuguesa. Os nossos investigadores (magistrados
e polícias) não investigam para encontrar a verdade, mas sim para
confirmarem as verdades que previamente decretam. E, como algumas dessas
verdades são axiomáticas, não carecem de demonstração.
Mas há mais entidades cujo comportamento revela que a pessoa humana não
constitui motivo suficientemente forte para as obrigar a alterar as rotinas
burocráticas e impessoais.
A luz da cozinha daquele apartamento esteve permanentemente acesa durante um
ano, ao fim do qual a EDP cortou o fornecimento de energia eléctrica, sem se
interessar em averiguar o motivo pelo qual um consumidor deixou de cumprir o
contrato celebrado entre ambos.
Os vales da pensão de reforma deixaram de ser levantados pela destinatária,
mas a segurança social nada se preocupou com isso. Ninguém nessa instituição
estranhou que a pensão de reforma deixasse de ser recebida, ou seja, que
passasse a haver uma receita extraordinária sem uma causa. E isto é tanto
mais insólito quanto os reformados são periodicamente obrigados a fazerem
prova de vida. Mas isso é só quando estão vivos e recebem a pensão.
Os CTT atulharam a caixa de correio daquela habitação de correspondência que
não era recebida sem que nenhum alerta alterasse as suas rotinas.
Finalmente, as finanças penhoraram uma casa e venderam-na sem que o
respectivo proprietário fosse citado. Como é que é possível num país
civilizado penhorar e vender a habitação de uma pessoa, aliás, por uma
dívida insignificante, sem que essa pessoa seja citada para contestar? Sem
que ninguém se certifique de que o visado tomou conhecimento desse processo?
Como é possível comprar uma casa sem a avaliar, sem sequer a ver por dentro?
Quem avaliou a casa? Quem fixou o seu preço?
Claro que agora aparecem todos a dizer que cumpriram a lei e, portanto,
ninguém poderá ser responsabilizado porque a culpa, na nossa justiça, é
sempre das leis. É esta generalizada irresponsabilidade (ninguém responde
por nada) que está a tornar este país cada vez mais insuportável.

Sem comentários:

Enviar um comentário