Estamos em 1951. A Alemanha, depois de conduzida por políticos loucos, mas apoiados pelo seu povo
I
Estamos em 1951. A Alemanha, depois de conduzida por políticos loucos, mas apoiados pelo seu povo, para uma guerra destruidora, estava dividida, ocupada por potências estrangeiras - e tinha uma enorme dívida soberana para pagar. A reconstrução do país e o seu crescimento económico eram incompatíveis com os encargos do serviço da dívida acumulada, antes e depois da guerra.
Começaram então duras negociações - conduzidas pelo lado alemão pelo histórico presidente do Deutsche Bank, Hermann Abs - entre o Governo alemão e representantes dos Governos dos países credores que levaram ao estabelecimento, em 1953, de um acordo de pagamento que, ainda hoje, constitui um excelente estudo de caso de resolução de dívidas soberanas.
II
"O Governo Federal entende que, na determinação do modo e da extensão com que a República Federal cumprirá esta responsabilidade [dívida externa alemã, anterior e posterior à 2ª Guerra Mundial], será tomada em consideração a situação geral da República Federal, incluindo, em particular, os efeitos das limitações sobre a sua jurisdição territorial e a sua capacidade para pagar"
Konrad Adenauer: Artigo I da carta de 6 de Março de 1951, integrando o Apêndice A do Acordo de Londres de 1953 sobre a Dívida Alemã.
"Este plano não poderá provocar sobre a economia alemã efeitos indesejáveis sobre a situação financeira interna nem drenar, injustificadamente, os recursos de divisa quer os actualmente existentes quer os potenciais. Os Governos signatários poderão solicitar as opiniões de peritos sobre todas as questões resultantes das negociações para a elaboração do plano bem como sobre a capacidade para pagar"
Konrad Adenauer: Artigo III da carta de 6 de Março de 1951, integrando o Apêndice A do Acordo de Londres de 1953 sobre a Dívida Alemã.
"Temos ainda a honra de, em nome dos três Governos, confirmar o entendimento do Governo Federal constante no segundo parágrafo do Artigo I e no Artigo III da carta de Vossa Excelência"
A. François-Poncet (pelo Governo da República Francesa), Ivone Kirkpatrick (pelo governo do Reino Unido), John J. McCloy (pelo Governo dos estados unidos da América): Carta de 6 de Março de 1951, integrando o Apêndice A do Acordo de Londres de 1953 sobre a Dívida Alemã.
IIIO Acordo de Londres de 1953 sobre a dívida alemã foi assinado em 27 de Fevereiro, depois de duras negociações com representantes de 26 países, com especial relevância para os EUA, Holanda, Reino Unido e Suíça, onde estava concentrada a parte essencial da dívida.
A dívida total foi avaliada em 32 biliões de marcos, repartindo-se em partes iguais em dívida originada antes e após a 2ª guerra.
Os EUA começaram por propor o perdão de toda a dívida contraída após a 2ª guerra. Mas, perante a recusa dos outros credores, chegou-se a um compromisso. Foi perdoada cerca de 50% da dívida e feito o re-escalonamento da dívida restante para um período de 30 anos. Para uma parte da dívida este período foi ainda mais alongado. Assim, parte do pagamento da dívida foi condicionada à reunificação. Só em Outubro de 1990, dois dias depois da reunificação, o Governo emitiu obrigações para pagar a dívida contraída nos anos 1920.
A ideia de condicionalidade do pagamento (pagamento apenas do que se pode - e quando se pode) esteve sempre presente desde o início das negociações. O acordo visou, não o curto prazo, mas antes procurou assegurar o crescimento económico do devedor e a sua capacidade efectiva de pagamento.
O acordo adoptou três princípios fundamentais:
1 - Perdão / redução substancial da dívida;
2 - Reescalonamento do prazo da dívida para um prazo longo;
3 - Condicionamento das prestações à capacidade de pagamento do devedor.
O pagamento devido em cada ano não pode exceder a capacidade da economia. Em caso de dificuldades, foi prevista a possibilidade de suspensão e de renegociação dos pagamentos. O valor dos montes afectos ao serviço da dívida não poderia ser superior a 5% do valor das exportações. As taxas de juro foram moderadas, variando entre 0 e 5%.
A grande preocupação foi gerar excedentes para possibilitar os pagamentos sem reduzir o consumo. Como ponto de partida, foi considerado inaceitável reduzir o consumo para pagar a dívida.
O pagamento foi escalonado entre 1953 e 1983. Entre 1953 e 1958 foi concedida a situação de carência durante a qual só se pagaram juros.
A estratégia alemã de negociação foi formulada e conduzida com todo o rigor e com a articulação de todos os agentes políticos. Mesmo perante as condições acima referidas, o Bundestag começou por recusar.
O acordo foi, finalmente, assinado mas sob fortes votos de protesto e só depois de forte pressão dos E.U.A.
O cumprimento do Acordo, por parte da Alemanha, foi possível graças a flexibilidade do seu articulado (pagamento condicionado pelo crescimento) e à política de desestatização/desnazificação levada a cabo pelos políticos regeneradores alemães, essencialmente Ludwig Erhard1, no Ministério da Economia, firmemente apoiado por Konrad Adenauer na Chancelaria.
IV O Acordo de Londres de 1953 sobre a dívida alemã é um estudo de caso muito interessante que tem interessado os estudiosos das situações de insolvência soberana para nas quais o tema do pagamento condicionado é incontornável
Ainda muito recentemente, o governador do Banco Central da Irlanda elaborou, publicamente, uma interessante reflexão sobre o pagamento condicionado do serviço da dívida soberana irlandesa2.
Para a presente situação portuguesas o estudo do Acordo de Londres também não deixa de ter uma enorme importância.
A ponderação da nossa situação leva-nos a sublinhar três exigências que a experiência alemã mostra serem incontornáveis:
1. A negociação da redução da dívida, o alongamento para um período adequado dos pagamentos e a redução dos juros para níveis moderados (próximos de 3,5%);
2. A entrada em acção de agentes políticos regeneradores, livres das responsabilidades pelas loucuras que provocaram o endividamento excessivo, com elevada capacidade negocial face aos credores;
3. A formulação e execução de uma política equivalente à desestatização/des nazificação da Alemanha que represente uma efectiva ruptura face ao persistente modelo estatizante que nos conduziu até aqui.
1 As reflexões de Erhard, vertidas em livro (Kriegsfinanzierung und Schuldenkonsolidierung: Finanças de Guerra e Consolidação da Dívida), sobre gestão da dívida a seguir a um período de loucura política, são ainda hoje de grande relevância. 2 No início deste mês, o Governador do Banco Central da Irlanda, Patrick Honohan, propôs o seguinte: "Uma versão simples [de entre as várias opções de engenharia financeira de partilha de risco mutuamente benéfica ] seria a Irlanda pagar mais quando o crescimento do seu produto nacional bruto for forte e menos quando o crescimento for mais fraco. O objectivo destas obrigações ligadas ao PNB, ou de inovações de partilha de risco similares, deve ser restaurar, pela via do crescimento, uma dinâmica favorável do rácio da dívida soberana." (Financial Times de 7 de Abril de 2011)
Economista e professor do ISEG
majesus@iseg.utl.pt
Estamos em 1951. A Alemanha, depois de conduzida por políticos loucos, mas apoiados pelo seu povo, para uma guerra destruidora, estava dividida, ocupada por potências estrangeiras - e tinha uma enorme dívida soberana para pagar. A reconstrução do país e o seu crescimento económico eram incompatíveis com os encargos do serviço da dívida acumulada, antes e depois da guerra.
Começaram então duras negociações - conduzidas pelo lado alemão pelo histórico presidente do Deutsche Bank, Hermann Abs - entre o Governo alemão e representantes dos Governos dos países credores que levaram ao estabelecimento, em 1953, de um acordo de pagamento que, ainda hoje, constitui um excelente estudo de caso de resolução de dívidas soberanas.
II
"O Governo Federal entende que, na determinação do modo e da extensão com que a República Federal cumprirá esta responsabilidade [dívida externa alemã, anterior e posterior à 2ª Guerra Mundial], será tomada em consideração a situação geral da República Federal, incluindo, em particular, os efeitos das limitações sobre a sua jurisdição territorial e a sua capacidade para pagar"
Konrad Adenauer: Artigo I da carta de 6 de Março de 1951, integrando o Apêndice A do Acordo de Londres de 1953 sobre a Dívida Alemã.
"Este plano não poderá provocar sobre a economia alemã efeitos indesejáveis sobre a situação financeira interna nem drenar, injustificadamente, os recursos de divisa quer os actualmente existentes quer os potenciais. Os Governos signatários poderão solicitar as opiniões de peritos sobre todas as questões resultantes das negociações para a elaboração do plano bem como sobre a capacidade para pagar"
Konrad Adenauer: Artigo III da carta de 6 de Março de 1951, integrando o Apêndice A do Acordo de Londres de 1953 sobre a Dívida Alemã.
"Temos ainda a honra de, em nome dos três Governos, confirmar o entendimento do Governo Federal constante no segundo parágrafo do Artigo I e no Artigo III da carta de Vossa Excelência"
A. François-Poncet (pelo Governo da República Francesa), Ivone Kirkpatrick (pelo governo do Reino Unido), John J. McCloy (pelo Governo dos estados unidos da América): Carta de 6 de Março de 1951, integrando o Apêndice A do Acordo de Londres de 1953 sobre a Dívida Alemã.
IIIO Acordo de Londres de 1953 sobre a dívida alemã foi assinado em 27 de Fevereiro, depois de duras negociações com representantes de 26 países, com especial relevância para os EUA, Holanda, Reino Unido e Suíça, onde estava concentrada a parte essencial da dívida.
A dívida total foi avaliada em 32 biliões de marcos, repartindo-se em partes iguais em dívida originada antes e após a 2ª guerra.
Os EUA começaram por propor o perdão de toda a dívida contraída após a 2ª guerra. Mas, perante a recusa dos outros credores, chegou-se a um compromisso. Foi perdoada cerca de 50% da dívida e feito o re-escalonamento da dívida restante para um período de 30 anos. Para uma parte da dívida este período foi ainda mais alongado. Assim, parte do pagamento da dívida foi condicionada à reunificação. Só em Outubro de 1990, dois dias depois da reunificação, o Governo emitiu obrigações para pagar a dívida contraída nos anos 1920.
A ideia de condicionalidade do pagamento (pagamento apenas do que se pode - e quando se pode) esteve sempre presente desde o início das negociações. O acordo visou, não o curto prazo, mas antes procurou assegurar o crescimento económico do devedor e a sua capacidade efectiva de pagamento.
O acordo adoptou três princípios fundamentais:
1 - Perdão / redução substancial da dívida;
2 - Reescalonamento do prazo da dívida para um prazo longo;
3 - Condicionamento das prestações à capacidade de pagamento do devedor.
O pagamento devido em cada ano não pode exceder a capacidade da economia. Em caso de dificuldades, foi prevista a possibilidade de suspensão e de renegociação dos pagamentos. O valor dos montes afectos ao serviço da dívida não poderia ser superior a 5% do valor das exportações. As taxas de juro foram moderadas, variando entre 0 e 5%.
A grande preocupação foi gerar excedentes para possibilitar os pagamentos sem reduzir o consumo. Como ponto de partida, foi considerado inaceitável reduzir o consumo para pagar a dívida.
O pagamento foi escalonado entre 1953 e 1983. Entre 1953 e 1958 foi concedida a situação de carência durante a qual só se pagaram juros.
A estratégia alemã de negociação foi formulada e conduzida com todo o rigor e com a articulação de todos os agentes políticos. Mesmo perante as condições acima referidas, o Bundestag começou por recusar.
O acordo foi, finalmente, assinado mas sob fortes votos de protesto e só depois de forte pressão dos E.U.A.
O cumprimento do Acordo, por parte da Alemanha, foi possível graças a flexibilidade do seu articulado (pagamento condicionado pelo crescimento) e à política de desestatização/desnazificação levada a cabo pelos políticos regeneradores alemães, essencialmente Ludwig Erhard1, no Ministério da Economia, firmemente apoiado por Konrad Adenauer na Chancelaria.
IV O Acordo de Londres de 1953 sobre a dívida alemã é um estudo de caso muito interessante que tem interessado os estudiosos das situações de insolvência soberana para nas quais o tema do pagamento condicionado é incontornável
Ainda muito recentemente, o governador do Banco Central da Irlanda elaborou, publicamente, uma interessante reflexão sobre o pagamento condicionado do serviço da dívida soberana irlandesa2.
Para a presente situação portuguesas o estudo do Acordo de Londres também não deixa de ter uma enorme importância.
A ponderação da nossa situação leva-nos a sublinhar três exigências que a experiência alemã mostra serem incontornáveis:
1. A negociação da redução da dívida, o alongamento para um período adequado dos pagamentos e a redução dos juros para níveis moderados (próximos de 3,5%);
2. A entrada em acção de agentes políticos regeneradores, livres das responsabilidades pelas loucuras que provocaram o endividamento excessivo, com elevada capacidade negocial face aos credores;
3. A formulação e execução de uma política equivalente à desestatização/des nazificação da Alemanha que represente uma efectiva ruptura face ao persistente modelo estatizante que nos conduziu até aqui.
1 As reflexões de Erhard, vertidas em livro (Kriegsfinanzierung und Schuldenkonsolidierung: Finanças de Guerra e Consolidação da Dívida), sobre gestão da dívida a seguir a um período de loucura política, são ainda hoje de grande relevância. 2 No início deste mês, o Governador do Banco Central da Irlanda, Patrick Honohan, propôs o seguinte: "Uma versão simples [de entre as várias opções de engenharia financeira de partilha de risco mutuamente benéfica ] seria a Irlanda pagar mais quando o crescimento do seu produto nacional bruto for forte e menos quando o crescimento for mais fraco. O objectivo destas obrigações ligadas ao PNB, ou de inovações de partilha de risco similares, deve ser restaurar, pela via do crescimento, uma dinâmica favorável do rácio da dívida soberana." (Financial Times de 7 de Abril de 2011)
Economista e professor do ISEG
majesus@iseg.utl.pt
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