sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Eu também quero ser verbo de encher-texto de José Manuel Fernandes desmascara Nuno Godinho de Matos...

Eu também quero ser verbo de encher
Nada atormenta os advogados das “senhas de presença” em tanto conselho de administração – "senhas" para eles moverem as suas influências, que no fundo é a razão profunda por que lhes pagam
Desde hoje de manhã que estou de boca aberta. Não sei se conseguirei fechá-la tão depressa. Tudo porque li uma entrevista como há muito, muito tempo, não lia algo de semelhante: a de Nuno Godinho de Matos ao jornal i.
Perguntarão: quem é Nuno Godinho de Matos? Pois é um advogado de Lisboa que era, até ao mês passado, administrador não executivo do Banco Espírito Santo. Uma busca na internet rapidamente nos indica que, além disso, foi fundador do Partido Socialista, trabalha há décadas com Daniel Proença de Carvalho, é actualmente vice-presidente da Ordem dos Advogados e foi durante muitos anos membro da Comissão Nacional de Eleições, lugar a que renunciou por ter representado nas últimas eleições autárquicas Moita Flores. Alguém de múltiplos talentos que, quero crer, falará com conhecimento de causa.
E o que nos diz ele nessa entrevista? Primeiro conta como se tornou administrador não executivo do BES. O convite chegou-lhe por via de um amigo de Ricardo Salgado com uma única justificação: era de boa política “incluir no conselho de administração alguém ligado à resistência ao antigo regime, de esquerda, e que não fosse profissional da actividade política”. Tão só, mais nada. Godinho de Matos ainda terá dito que “sabia tanto de bancos como de calceteiro, embora goste de calçadas”, mas Ricardo Salgado, que o convidou para um jantar na sede do BES, “teve a gentileza de dar as respostas que as pessoas educadas dão e dizer que não era assim”.
Conversa feita, lugar assumido. Durante seis anos Nuno Godinho de Matos foi administrador “independente”, não executivo, do banco. Com o mesmo estatuto e a mesma remuneração de outra advogada, Rita Amaral Cabral (companheira de Marcelo Rebelo de Sousa).
Vamos agora saber o que fazia Godinho de Matos naquele conselho. A resposta objectiva é: nada. Não sou eu que digo, é o próprio: “Em seis anos nunca abri a boca, entrava mudo e saía calado. Bem como todos os restantes administradores.” A própria existência desses conselhos de administração alargados é, diz Godinho de Matos, “um pró-forma”: “É algo que tem de existir para ratificar as deliberações nas questões fundamentais tomadas pela comissão executiva.” Mais: “os administradores não executivos são um detalhe, um acessório na toalete de uma senhora”.
Para um “acessório” Nuno Godinho de Matos até achava que saía “barato” ao BES, pois só recebiam senha de presença: líquido, uns “2400 euros por reunião”, 10 a 12 mil por ano. Pena que os documentos depositados na CMVM contem outra história, pois revelam que recebeu, brutos, 42 mil euros. É como eu digo: para “verbo de encher” assim, eu também eu gostava. Sobretudo com a insustentável leveza do que vem a seguir, isto é, o achar que é tudo culpa do Banco de Portugal, da CMVM e dos auditores. O administrador não executivo nunca viu nada, nunca ouviu nenhum dos rumores que circulavam por Lisboa, nunca se interrogou sobre as notícias dos jornais, nunca se incomodou com as emendas às declarações de IRS de Ricardo Salgado, nunca achou, numa palavra, que pudesse haver algo que perturbasse a serena rotina das suas “senhas de presença”.
Nada disto seria demasiado importante – afinal, quem é Nuno Godinho de Matos? – se não fosse revelador sobre a forma como as coisas funcionam. Godinho de Matos era um “acessório” a quem valia a pena pagar senhas de presença não porque desse contributos relevantes nas reuniões em que participava, mas porque compunha o ramalhete de ter alguém “de esquerda” e, como tantos outros advogados que há em idênticas funções em dezenas, centenas de conselhos de administração, ajudava a “abrir portas”. Não sei se alguma vez o fez, nem isso é importante: afinal ele aceitava fazer parte da estratégia de Ricardo Salgado, uma estratégia que, nesta mesma entrevista, define como motivada pelo desejo de poder. Mais exactamente, “o poder social e o financeiro”. Ora, como ele explica, ter uma estratégia de “preservação do poder” não tem nada de mesquinho ou de egoísta, com também faz questão de sublinhar – é, no seu ponto de vista, exactamente a mesma motivação de qualquer político.
Este fundador do PS que diz que gostaria de ter um governo chefiado por um Vítor Gaspar é alguém que aparentemente lida bem com estas coisas do poder e do dinheiro, ou não tivesse trazido em tempos, do Luxemburgo, uma mala com dinheiro dos socialistas europeus para entregar a Mário Soares. Nada disso o atormenta.
Como nada atormenta os advogados das “senhas de presença” em tanto conselho de administração – “senhas” para eles moverem as suas influências, que no fundo é a razão profunda por que lhes pagam, actuação que para eles é tão natural como beber água. Que entretanto caia um edifício do tamanho do BES também nunca será nada com que percam uma noite de sono (a não quando lhes congelam as contas, a única queixa que Godinho de Matos agora parece ter) – a culpa será sempre de outros.
Eu, confesso, continuo de boca aberta.
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