Senhores Ministros:
Tenho 86 anos, e modéstia à parte, sempre honrei o meu país pela forma
como o representei em todos os palcos, portugueses e estrangeiros, sem
pedir nada em troca senão respeito, consideração, abertura - sobretudo
aos novos talentos - e seriedade na forma como o Estado encara o meu
papel como cidadão e como artista.
Vivi a guerra de 38/45 com o mesmo cinto com que todos os portugueses
apertaram as ilhargas. Sofri a mordaça de um regime que durante 48
anos reprimiu tudo o que era cultura e liberdade de um povo para o
qual sempre tive o maior orgulho em trabalhar. Sofri como todos, os
condicionamentos da descolonização. Vivi o 25 de Abril com uma
esperança renovada, e alegrei-me pela conquista do voto, como se isso
fosse um epítome libertador.
Subi aos palcos centenas, senão milhares de vezes, da forma que melhor
sei, porque para tal muito trabalhei.
Continuei a votar, a despeito das mentiras que os políticos utilizaram
para me afastar do Teatro Nacional. Contudo, voltei a esse teatro pelo
respeito que o meu público me merece, muito embora já coxo pelo
desencanto das políticas culturais de todos os partidos, sem excepção,
porque todos vós sois cúmplices da acrescida miséria com que se tem
pintado o panorama cultural português.
Hoje, para o Fisco, deixei de ser Actor. e comigo, todos os meus
colegas Actores e restantes Artistas destes país - colegas que muito
prezo e gostava de poder defender.
Tudo isto ao fim de setenta anos de carreira! É fascinante.
Francamente, não sei para que servem as comendas, as medalhas e as
Ordens, que de vez em quando me penduram ao peito?
Tenho 86 anos, volto a dizer, para que ninguém esqueça o meu direito a
não ser incomodado pela raiva miudinha de um Ministério das Finanças,
que insiste em afirmar, perante o silêncio do Primeiro-Ministro e os
olhos baixos do Presidente da República, de que eu não sou actor, que
não tenho direito aos benefícios fiscais, que estão consagrados na
lei, e que o meu trabalho não pode ser considerado como propriedade
intelectual.
Tenho pena de ter chegado a esta idade para assistir angustiado à
rapina com que o fisco está a executar o músculo da cultura
portuguesa. Estamos a reduzir tudo a zero. a zeros, dando cobertura a
uma gigantesca transferência dos rendimentos de quem nada tem para os
que têm cada vez mais.
É lamentável e vergonhoso que não haja um único político com
honestidade suficiente para se demarcar desta estúpida cumplicidade
entre a incompetência e a maldade de quem foi eleito com toda a boa
vontade, para conscientemente delapidar a esperança e o arbítrio de
quem, afinal de contas, já nem nas anedotas é o verdadeiro dono de
Portugal: nós todos!
É infame que o Direito e a Jurisprudência Comunitárias sirvam só para
sustentar pontualmente as mentiras e os joguinhos de poder dos
responsáveis governamentais, cujo curriculum, até hoje, tem
manifestamente dado pouca relevância ao contexto da evolução
sociocultural do nosso povo. A cegueira dos senhores do poder
afasta-me do voto, da confiança política, e mais grave ainda, da
vontade de conviver com quem não me respeita e tem de mim a imagem de
mais um velho, de alguém que se pode abusiva e irresponsavelmente
tirar direitos e aumentar deveres.
É lamentável que o senhor Ministro das Finanças, não saiba o que são
Direitos Conexos, e não queiram entender que um actor é sempre autor
das suas interpretações - com diretos conexos, e que um intérprete
e/ou executante não rege a vida dos outros por normas de Exel ou por
ordens "superiores", nem se esconde atrás de discursos catitas ou
tiradas eleitoralistas para justificar o injustificável,
institucionalizando o roubo, a falta de respeito como prática dos
governos, de todos os governos, que, ao invés de procurarem a
cumplicidade dos cidadãos, se servem da frieza tributária para
fragilizar as esperanças e a honestidade de quem trabalha, de quem
verdadeiramente trabalha.
Acima de tudo, Senhores Ministros, o que mais me agride nem é o facto
dos senhores prometerem resolver a coisa, e nada fazer, porque isso já
é característica dos governos: o anunciar medidas e depois voltar
atrás. Também não é o facto de pôr em dúvida a minha honestidade
intelectual, embora isso me magoe de sobremaneira. É sobretudo o nojo
pela forma como os seus serviços se dirigem aos contribuintes,
tratando-nos como criminosos, ou potenciais delinquentes, sem olharem
para trás, com uma arrogância autista que os leva a não verem que há
um tempo para tudo, particularmente para serem educados com quem gera
riqueza neste país, e naquilo que mais me toca em especial, que já é
tempo de serem respeitadores da importância dos artistas, e que devem
sê-lo sem medos e invejas desta nossa capacidade de combinar verdade
cénica com artifício, que é no fundo esse nosso dom de criar, de ser
co-autores, na forma, dos textos que representamos.
Permitam-me do alto dos meus 86 anos deixar-lhes um conselho:
aproveitem e aprendam rapidamente, porque não tem muito tempo já.
Aprendam que quando um povo se sacrifica pelo seu país, essa gente, é
digna do maior respeito. porque quem não consegue respeitar, jamais
será merecedor de respeito!
RUY DE CARVALHO
Tenho 86 anos, e modéstia à parte, sempre honrei o meu país pela forma
como o representei em todos os palcos, portugueses e estrangeiros, sem
pedir nada em troca senão respeito, consideração, abertura - sobretudo
aos novos talentos - e seriedade na forma como o Estado encara o meu
papel como cidadão e como artista.
Vivi a guerra de 38/45 com o mesmo cinto com que todos os portugueses
apertaram as ilhargas. Sofri a mordaça de um regime que durante 48
anos reprimiu tudo o que era cultura e liberdade de um povo para o
qual sempre tive o maior orgulho em trabalhar. Sofri como todos, os
condicionamentos da descolonização. Vivi o 25 de Abril com uma
esperança renovada, e alegrei-me pela conquista do voto, como se isso
fosse um epítome libertador.
Subi aos palcos centenas, senão milhares de vezes, da forma que melhor
sei, porque para tal muito trabalhei.
Continuei a votar, a despeito das mentiras que os políticos utilizaram
para me afastar do Teatro Nacional. Contudo, voltei a esse teatro pelo
respeito que o meu público me merece, muito embora já coxo pelo
desencanto das políticas culturais de todos os partidos, sem excepção,
porque todos vós sois cúmplices da acrescida miséria com que se tem
pintado o panorama cultural português.
Hoje, para o Fisco, deixei de ser Actor. e comigo, todos os meus
colegas Actores e restantes Artistas destes país - colegas que muito
prezo e gostava de poder defender.
Tudo isto ao fim de setenta anos de carreira! É fascinante.
Francamente, não sei para que servem as comendas, as medalhas e as
Ordens, que de vez em quando me penduram ao peito?
Tenho 86 anos, volto a dizer, para que ninguém esqueça o meu direito a
não ser incomodado pela raiva miudinha de um Ministério das Finanças,
que insiste em afirmar, perante o silêncio do Primeiro-Ministro e os
olhos baixos do Presidente da República, de que eu não sou actor, que
não tenho direito aos benefícios fiscais, que estão consagrados na
lei, e que o meu trabalho não pode ser considerado como propriedade
intelectual.
Tenho pena de ter chegado a esta idade para assistir angustiado à
rapina com que o fisco está a executar o músculo da cultura
portuguesa. Estamos a reduzir tudo a zero. a zeros, dando cobertura a
uma gigantesca transferência dos rendimentos de quem nada tem para os
que têm cada vez mais.
É lamentável e vergonhoso que não haja um único político com
honestidade suficiente para se demarcar desta estúpida cumplicidade
entre a incompetência e a maldade de quem foi eleito com toda a boa
vontade, para conscientemente delapidar a esperança e o arbítrio de
quem, afinal de contas, já nem nas anedotas é o verdadeiro dono de
Portugal: nós todos!
É infame que o Direito e a Jurisprudência Comunitárias sirvam só para
sustentar pontualmente as mentiras e os joguinhos de poder dos
responsáveis governamentais, cujo curriculum, até hoje, tem
manifestamente dado pouca relevância ao contexto da evolução
sociocultural do nosso povo. A cegueira dos senhores do poder
afasta-me do voto, da confiança política, e mais grave ainda, da
vontade de conviver com quem não me respeita e tem de mim a imagem de
mais um velho, de alguém que se pode abusiva e irresponsavelmente
tirar direitos e aumentar deveres.
É lamentável que o senhor Ministro das Finanças, não saiba o que são
Direitos Conexos, e não queiram entender que um actor é sempre autor
das suas interpretações - com diretos conexos, e que um intérprete
e/ou executante não rege a vida dos outros por normas de Exel ou por
ordens "superiores", nem se esconde atrás de discursos catitas ou
tiradas eleitoralistas para justificar o injustificável,
institucionalizando o roubo, a falta de respeito como prática dos
governos, de todos os governos, que, ao invés de procurarem a
cumplicidade dos cidadãos, se servem da frieza tributária para
fragilizar as esperanças e a honestidade de quem trabalha, de quem
verdadeiramente trabalha.
Acima de tudo, Senhores Ministros, o que mais me agride nem é o facto
dos senhores prometerem resolver a coisa, e nada fazer, porque isso já
é característica dos governos: o anunciar medidas e depois voltar
atrás. Também não é o facto de pôr em dúvida a minha honestidade
intelectual, embora isso me magoe de sobremaneira. É sobretudo o nojo
pela forma como os seus serviços se dirigem aos contribuintes,
tratando-nos como criminosos, ou potenciais delinquentes, sem olharem
para trás, com uma arrogância autista que os leva a não verem que há
um tempo para tudo, particularmente para serem educados com quem gera
riqueza neste país, e naquilo que mais me toca em especial, que já é
tempo de serem respeitadores da importância dos artistas, e que devem
sê-lo sem medos e invejas desta nossa capacidade de combinar verdade
cénica com artifício, que é no fundo esse nosso dom de criar, de ser
co-autores, na forma, dos textos que representamos.
Permitam-me do alto dos meus 86 anos deixar-lhes um conselho:
aproveitem e aprendam rapidamente, porque não tem muito tempo já.
Aprendam que quando um povo se sacrifica pelo seu país, essa gente, é
digna do maior respeito. porque quem não consegue respeitar, jamais
será merecedor de respeito!
RUY DE CARVALHO
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